Quiteria Chagas: O Berimbau e o Berço do Samba Negro que Ecoa no Presente

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Não é apenas voz. É trincheira, é memória viva, é celebração em forma de gingado e resistência. Quiteria Chagas, artista cujas raízes se entranham profundamente na cultura afro-brasileira, ergue o pavilhão das mulheres negras sambistas com uma convicção que vai muito além do palco. Em um momento onde o reconhecimento tardio tenta reparar séculos de apagamento, Chagas posiciona sua arte como ato político e afetivo, homenageando explicitamente as gigantes que pavimentaram seu caminho com luta e suor sob o sol do preconceito.

Para Quiteria, o samba, especialmente o samba de roda, o samba de caboclo, o partido-alto que fala da rua e da dor, é território sagrado e ancestralmente negro. Um território que, contudo, viu por demasiado tempo as vozes e os corpos das mulheres que o forjaram serem relegados à sombra, suas histórias apagadas, seus nomes esquecidos. “Celebrá-las”, diz ela, com a serenidade de quem carrega um fardo transformado em missão, “não é apenas um tributo, é um ato de justiça. É colocar luz onde sempre houve brilho, mas que a história oficial insistiu em ofuscar.” Ela fala das Tias, das Mães de Santo que eram também Mães do Samba, das compositoras geniais, das intérpretes de pulmão de aço e coração aberto, figuras como Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Tia Doca, e tantas outras anônimas cujas vidas são a própria coluna vertebral do gênero.

Essa celebração não é apenas retórica. Impregna sua música, sua postura cênica, as escolhas temáticas de suas composições. Quando sobe ao palco, Quiteria carrega consigo essa genealogia poderosa. Seu canto, potente e cheio de nuances, é herdeiro direto dessa linhagem. Seu gingado é reverência. Cada nota, cada passo, cada letra que canta a força, a beleza e as complexidades da mulher negra é um capítulo vivo dessa história sendo reescrita e reafirmada. Ela não se furta de abordar as dores – o racismo, o machismo, a solidão imposta – mas o faz sempre com uma perspectiva de superação e orgulho, transformando a narrativa em instrumento de empoderamento.

E é com essa energia afirmativa que Quiteria Chagas projeta o futuro. Longe de se contentar com o lugar conquistado, ela anuncia novos projetos que amplificam ainda mais seu compromisso com a cultura negra e, em especial, com as mulheres. Um novo álbum está em gestação, prometendo mergulhos ainda mais profundos nas sonoridades ancestrais, misturando samba com ijexá, candomblé com partido-alto, sempre com a curadoria rítmica que a caracteriza. O trabalho promete ser uma cartografia sonora da diáspora negra baiana e brasileira.

Além da música, surge outro eixo vital: a educação e a transmissão do conhecimento. Quiteria revela planos concretos para oficinas e projetos socioculturais voltados especialmente para jovens meninas negras. O objetivo é claro: usar a música, a percussão, a dança e a história do samba como ferramentas de autoestima, resgate identitário e formação de novas lideranças culturais. “É preciso semear”, afirma, com os olhos brilhando de determinação. “Semear a consciência, o amor pela nossa cultura, a técnica, mas, acima de tudo, a certeza de que elas têm lugar, voz e poder. É passar o bastão, mas também ensinar a fabricar novos instrumentos de luta e alegria.”

Quiteria Chagas, portanto, se consolida muito mais do que uma talentosa cantora e compositora. Ela é uma griô contemporânea, uma ponte entre o passado glorioso e muitas vezes negado, e um futuro que se deseja mais justo e vibrante. Seu trabalho é um constante lembrete de que o samba, em sua essência mais pura, é negro, é feminino, é resistência e é celebração. E ao celebrar as rainhas que a antecederam, ela mesma tece seu próprio manto real, inspirando uma nova geração a ocupar seu lugar na roda, com orgulho, força e a inabalável cadência daqueles que sabem de onde vieram e para onde devem seguir. Seu berimbau ecoa o chamado ancestral, convocando todas ao terreiro do samba e da luta.

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